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Pandemia (i)moral

Updated: Jun 12, 2020


Neste momento, em que escrevo estas linhas, muitos de vocês estão confinados em suas casas, ou pelo menos estão sendo estimulados pelo governo de onde vocês moram a ficarem em casa o máximo possível. Estão lendo muitos textos sobre o porquê desta pandemia, sobre o que fazer durante a quarentena, sobre como lavar as mãos da forma correta. Estão marcando encontros virtuais com os amigos e sonhando com o longo abraço que darão nos entes queridos quando isto tudo acabar.

Estão, também, reclamando de não poderem ir trabalhar, reclamando que não podem parar de trabalhar, reclamando que já estão cansados de ficar em casa, que não conseguem encontrar o que têm vontade de comer nos supermercados, que não conseguem encontrar - quem diria - papel higiênico. São mesmo muitas queixas!

Queria, primeiro de tudo, dizer que sinto muito. Sinto muito que estejamos passando por esta situação, que tenhamos que ficar isolados de forma forçada, que não estejamos vivendo os dias da forma como gostaríamos. Não tenho coração de gelo, como vocês sabem, e por mais que já tenha visto que o mundo não é cor de rosa, o meu mundo interior sempre foi, e sempre me assusto com as cores do mundo real, quase todos os dias. Sinto muito pelo medo que estamos sentindo, pelos doentes e seus familiares, sinto muito pelos meus amigos e também desconhecidos no mundo inteiro que estão tendo que lidar diretamente com os leitos de hospital, as mortes, a falta de equipamentos, a incapacidade de ser deus.

No entanto, escrevo para um público muito seleto. Vocês são meus amigos. Talvez algum desconhecido, numa noite que vira dia dessas de quarentena, ache este texto depois de ler todos os resultados da busca por pandemia que vieram antes de mim, mas serão muito poucos, se é que haverá algum. Mas mesmo estes perdidos também fazem parte de um público seleto. Um público que, mesmo que esteja com contas em atraso e com medo de perder o emprego quando tudo isto acabar (ou que já o tenha perdido), ainda tem acesso à internet, um computador, um smartphone, sabe ler, escrever, já viajou de avião para algum lugar, mesmo que pertinho, que apesar das dificuldades, vive a vida que mal ou bem escolheu. Que tem condição, por estas coisas e outras mais, de pensar no impacto econômico desta pandemia.

Não sei se vocês sabem, mas esta não é a realidade da maioria das pessoas no mundo. Eu não queria estar na Itália, como uma prima minha está, por exemplo. Seria enlouquecedor pensar no que está acontecendo do lado de fora das minhas paredes, mas ter paredes à sua volta é privilégio. Muitas pessoas não as têm.

Realmente é ruim e nos enche de uma espécie de pânico chegar no supermercado e não encontrar um pacote de macarrão, ou um pacote de papel higiênico. Não preciso dizer que há pessoas que não têm o que comer agora, mas mesmo antes disto tudo acontecer, também não tinham. Milhares, centenas de milhares, na verdade milhões de pessoas passam fome no mundo todos os dias. Outros milhões não têm acesso a saneamento básico, não possuem sequer água corrente para lavar as mãos por 20 segundos, com sabão, ainda por cima. Nunca tiveram. Pessoas que jamais poderão ficar a 1,5-2 metros de distância dos outros porque moram em cômodos com a família inteira, pessoas estas que terão ou poderão ter exposição ao coronavírus (e ao vírus da gripe, à sífilis, à sarna e tudo mais) e certamente contagiarão a todos.

Pessoas que nunca conseguiram ter empregos, pessoas que sempre tiveram e sempre terão subempregos, que nunca conseguirão ter uma vida digna.

E aí chegamos no momento da conversa onde tocamos no assunto da recessão econômica, queda da bolsa de valores, desvalorização da moeda... pra milhões de pessoas no mundo, independente de recessão econômica ou não, a vida delas não vai piorar. Não vai piorar! Porque não tem como ficar pior! Quando lemos no jornal, como eu li aqui na Austrália hoje, que uma associação de esporte vai precisar de centenas de milhões (sim, centenas de milhões) de dólares emprestados para sair da crise causada pela pandemia, acho que está na hora de pensar no que estamos fazendo das nossas vidas. Já falamos sobre estas coisas diariamente, mas enquanto tomamos o nosso café (pra quem é de café) e fazemos alguma refeição, mesmo que só um lanchinho rápido, mas logo, logo entramos no carrossel do cotidiano, quando acordamos, comemos (a menos que você esteja fazendo jejum intermitente como eu, para perder uns quilinhos indesejados...), saímos para o trabalho, paramos para almoçar (ou reclamamos que "hoje não tive nem tempo!"), voltamos para casa, seja ela própria ou alugada, usamos nossos smartphones, computadores, televisões, TVs por assinatura de qualquer formato que seja... ou então temos a sorte de ser fim de semana e encontramos com os amigos, seja a pé, porque moramos num bairro seguro, pagando transporte público, táxi, Uber, ou com o nosso próprio carro, para comermos alguma coisa, de repente beber alguma coisa também, rir um pouco, achar um absurdo o salário obsceno de alguns "atletas", voltamos pra casa (sim, a nossa casa), dormimos na nossa cama... Claro, coisas temporariamente interrompidas por causa de uma pandemia. Temporariamente.

Eu não sei vocês, mas eu acho que a humanidade está mais preocupada com o dinheiro do que com a humanidade em si. A maioria de nós já não se lembra ou nem era nascido quando do último grande evento mundial (acho eu que foi a segunda guerra, não lembro de cabeça de ter havido mais nenhum evento que impactasse o mundo inteiro de uma só vez como o COVID-19 depois da segunda guerra, mas corrijam-me se estiver errada), e ninguém faz a menor ideia do que é não ter todas essas "coisas". Não me entendam mal, também gosto do dinheiro. Também adoro viajar, adoro comprar "coisas", adoro ter a minha casa, o meu cantinho do jeito que eu gosto.

Mas não acho e nem nunca achei normal virarmos as costas para tanto sofrimento como viemos fazendo. Não acho normal passarmos os nossos dias preocupados em irmos trabalhar porque senão não teremos dinheiro para pagar as contas. E não vejo isso ter menos importância para as pessoas que têm mais dinheiro do que eu. Pelo contrário.

Como disse antes, acho que devemos parar para pensar no que estamos fazendo com a nossa vida, com os nossos dias. Ver o nosso time superfaturado jogar, assistir aquele filme ou série que nos emociona com aqueles profissionais ganhando centenas de milhares ou milhões da moeda que for é realmente muito bom. Ter conforto é realmente muito bom. Mas será que o preço que pagamos não é muito alto? Alguém mais pensa nisso também? Será que só eu que acho que o dinheiro, este personagem fictício, criado pelos humanos, é mais valioso do que o seu próprio criador?

Não sou leviana de achar que o dinheiro não é importante. Sei que é. Sei das possíveis consequências de uma crise econômica mundial. Sei do sofrimento que isso vai causar a muita gente. Mas também sei que quando muitos de nós estão do mesmo lado, cooperando para um interesse comum, como é o de ficar saudável (e vivo!), chegamos longe. E sei que se realmente for do interesse de muitos, conseguimos fazer isso até com Ele, o dinheiro, e a sua representante-mor, a economia mundial. Não vou dar sugestões de como resolver a tal crise, infelizmente mal consigo cuidar das minhas finanças (porque não estudei para isso e realmente não dou tanta importância). Mas tem milhares de pessoas bastante capazes pelo mundo inteiro que podem sentar juntas e elaborar um plano perfeito para nós. E nós podemos nos fazer ouvir e também mudar o nosso olhar.

Se eu pudesse fazer um pedido, pediria que a humanidade como um todo acordasse com esta crise. Que pudéssemos ter mais liberdade para fazer o que gostamos, obviamente sermos recompensados à altura, mas sem deixar tanta gente sofrendo mundo afora e fingir que eles estão fora do nosso alcance. Que entendamos que dinheiro é bom, mas que a quantidade de energia que gastamos para obtê-lo vai ser sempre infinitamente maior do que aquela gasta por aqueles que controlam os meios de produção. Que nos fazem sentir que estamos alcançando alguma coisa na vida, quando na verdade estamos contribuindo para a desigualdade mundial e para a falta que tanta gente sente. Falta de tudo. Inclusive, de humanidade.

Vamos lá minha gente, vamos entender que tudo o que fazemos repercute no nosso vizinho, na nossa sociedade, no nosso mundo. Vamos olhar e ver que quando estamos juntos, cuidando um do outro, somos mais fortes, mais saudáveis, mais prósperos e mais felizes. Vamos tentar lembrar destes efeitos mesmo depois que tudo voltar ao "normal", depois que as portas se abrirem novamente. Que deixemos os nossos corações se abrirem também. Ajudem. Ajudem uma instituição da sua preferência, uma empresa específica, uma pessoa especial com dinheiro (ó, o tão amado), com tempo de voluntariado, com experiência profissional, de forma gratuita ou a preço de custo. De alguma forma, de qualquer forma. Afinal, quanto mais gente puder lavar as mãos, menos ficarão doentes e menor será a chance de você adoecer... Bora pra frente, que atrás vem gente. Isso tudo vai passar e desejo a todos nós muita saúde e muita prosperidade, com ou sem dinheiro. Um brinde ao próximo abraço!

P.S.: recomendo a leitura do livro "Sapiens - Uma breve história da humanidade", de Yuval Noah Harari. Agora mais ninguém além dos meus amigos que trabalham em hospital vai me convencer que está sem tempo para ler um livro... também disponível em áudio-livro (acho que só em inglês), se você gosta de escutar alguma coisa enquanto faz o seu exercício em casa. Não ganho comissão, só conhecimento mesmo.

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