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Qual a cor da minha pele?

Cresci no Brasil, Rio de Janeiro. Passei por alguns bairros desde que nasci, todos na zona norte da cidade do Rio. Penha, Ilha do Governador, morei a vida inteira no Rio Comprido (por muito tempo, dizendo que era Tijuca) e quando era muito pequena morei também em Campo Grande. Convivi a vida inteira com pessoas de classe média e classe baixa, alguns poucos da classe alta que entraram um pouco mais tarde, já no segundo grau ou na faculdade. Estudei num colégio federal, público, com todo o tipo de gente. Foi a minha salvação.


Desde muito pequena, era elogiada pela minha pele branca. "Branquinha", "branquela". Ou então, criticada pela minha pele branca, "precisa pegar um sol, está com cor de doente". Mas a verdade é que, vindo de um país preconceituoso como o Brasil, desde a adolescência entendia que mesmo essas críticas eram boas, porque significava que eu tinha a pele clara, tão cobiçada. Tanto que, pouco antes de entrar na faculdade, lembro-me de pedir pro meu pai falar com o amigo dermatologista dele para perguntar sobre um filtro solar que não fosse tão pegajoso como os mais baratos, para que eu pudesse usar diariamente nos meus braços, que estavam ficando amarelos. Já que a minha barriga e pernas estavam sempre cobertas e eram "brancas". Lembro mesmo de me preocupar com isso num momento da minha vida, de ficar da cor "original". Por um bom tempo na minha vida, fui racista. Nunca fui hostil, nunca deixei de tratar pessoas não-brancas bem nem nunca as tratei mal, mas por um bom tempo achei que a maioria das pessoas que não eram brancas eram menos inteligentes. E, por isso, me envergonho.


Era o discurso que ouvia sempre, em todo lado. A parte da inteligência era a que mais me chamava atenção; não me atinha muito às outras realidades dos pretos, como a sexualização, a violência, o desrespeito. Minha família se reunia com frequência aos domingos, e volta e meia escapulia um comentário do gênero, e cresci achando que isso era uma verdade. Felizmente, fui crescendo e vendo que muitas coisas não eram bem assim, conhecendo muitos negros inteligentes e me questionando e prestando atenção aos questionamentos feitos por outras pessoas sobre a veracidade destas afirmações. Um dos meus primeiros beijos foi num menino preto, mas a reação que isso causou nos meus amigos e nos amigos dele foi tão negativa, que me fez fingir que nada tinha acontecido. Porque naquela época, eu lidava com outras questões pessoais, e acabei achando que na verdade o problema era eu, e me afastei. Não sei se ele se afastou porque eu me afastei, ou se ficou também surpreso com a reação negativa dos amigos, éramos adolescentes. Tudo pra adolescente é questão de vida ou morte, não é mesmo? Mas lembro do sentimento de desajuste.


Atire a primeira pedra o brasileiro que tem certeza absoluta que só tem sangue branco e europeu na veia. Certamente haverá muitos, mas mais certamente bem menos do que o esperado. Na minha família, por exemplo, temos origem européia, sem dúvida, mas também gente escurinha do oriente médio e indígena ou, quiçá, preto mesmo. Digo quiçá porque vergonhosamente não sei. As versões são diferentes de acordo com o familiar que conta a história, mas minha bisavó materna era "escurinha". Sabe-se lá o que isso quer dizer. E, além de ousar ser escurinha, ela se amancebou com o meu bisavô. É isso aí, é assim que a história é contada. Duas pessoas de origens diferentes, cor de pele diferentes, religiões diferentes, que se renderam ao tão desejado... amor. Que largaram tudo em suas vidas para viverem juntos, apesar de terem sido excluídos das próprias famílias por conta disso. Que tiveram filhos, e os criaram juntos. Não puderam ter o casamento religioso tradicional, mas fizeram uma vida baseada em amor. E, por isso, são execrados até hoje. Mas a mesma história faz sucesso se virar filme de Hollywood. Vai lá entender.


Quando eu comecei a entender que os pretos não são menos inteligentes, eu ainda não conseguia explicar a diferença social com a qual eu cresci e vivia todos os dias. Então, apelei para a genética. Resolvi dizer pra mim mesma que era uma herança genética não se preocupar com bens materiais, não cuidar da casa e ambiente onde moram, darem mais importância à música e festas do que ao estudo e trabalho. Que os poucos que quebravam esses padrões eram os meus amigos, as pessoas de pele escura que faziam parte da minha vida, e outras semelhantes pelo mundo. E não consigo nem descrever a vergonha que sinto quando lembro disso.


Mas eu não entendia. Eu não aprendi na escola que a escravidão no Brasil colocou os pretos em séculos de desvantagens, desvantagens essas que muita gente hoje em dia se esforça para perpetuar. Eu não cresci numa família que respeitasse as diferenças (sejam elas quais forem) e que, apesar de não ser explicitamente racista, também nunca teve um discurso antirracista. Eu achava "normal" ter tanta diferença! Achava que era o destino de cada um, que não tinha nada a ser feito além de botar na cabeça das pessoas "de cor" que elas são responsáveis pelo próprio destino. Mas que merda. Mas que vergonha. E me envergonho, mais uma vez, de ter demorado tanto tempo para entender que não ser racista não é suficiente. É, realmente, preciso ser antirracista.


Foi depois de sair do Brasil e enfrentar o mundo, como já escrevi em outro texto daqui do blog, que entendi o quão prevalente o racismo é. Só depois de sentir na pele (sem trocadilhos) eu fui me preocupar em nadar contra a corrente. E desde o nascimento da minha filha eu tenho me tornado ainda mais ativa nesta luta. Quero cada vez aprender mais, e sedimentar que o mundo só será um lugar seguro para mim e minha família se for seguro para os outros também. Enquanto tiver gente sofrendo, gente injustiçada, maltratada, alienada pelo simples fato de ser, nem eu, nem minha filha e nem o meu companheiro estaremos seguros. É preciso entender que quanto mais gente pobre, infeliz e violentada existir à nossa volta, maior é a chance de alguma coisa ruim acontecer com as pessoas com as quais nos importamos. Essa luta é de todos, independente da cor da pele ou do saldo da conta bancária. É preciso comprar aquela boneca negra, aquele super-herói negro, aquele livro com o personagem principal negro, ver aquele filme onde negros ocupam lugar de destaque como exemplo, e não só como escravos, criminosos ou desfavorecidos de alguma forma, questionar porque tem poucos negros no seu condomínio, no seu trabalho, na sua sala de aula, na sua vida. Se você for empregador, empregue pessoas com as qualificações que você precisa, e divida as vagas, por exemplo. E até dividindo a coisa já fica desigual, contando que em alguns países, como no Brasil, a população negra é maior do que a não-negra. Mas já é um começo.


E então, qual a cor da minha pele? Gosto hoje de pensar que é a cor da mistura de gerações, histórias, culturas. Tenho desde a pele mais branca e muito provavelmente à mais escura no meu DNA. Dependendo do país onde estou, tenho a pele de uma cor diferente, varia de acordo com os olhos que me veem. E no fim das contas, a cor da minha pele não importa. Importa são as cores que uso para pintar o mundo que estou construindo. E não quero deixar cor nenhuma de fora.




Ei, o texto acabou, mas pode tirar esse sorrisinho de final feliz do rosto. Eu não sou legal por ter escrito isto. Eu só estou fazendo a minha obrigação, e não mereço nenhum tapinha nas costas. Aproveita e conversa sobre isso com seus filhos e seus amigos, e vai mudando pra melhor o que for possível pra você mudar. E não assuma que por não ser racista, você está isento dessa luta. É preciso ser antirracista, pra ontem. Pra salvar o que resta deste mundo. Leia livros sobre o assunto. Converse com pessoas que sofrem racismo para entender melhor. AJUDE. Faça a sua parte. Da mesma forma que os pretos têm a vida marcada ao sair da barriga das suas mães, os brancos (em todos os seus tons...) têm a obrigação de desfazer essa desigualdade SIM. Vamos juntos!

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